Falar de café no Egito é viajar no tempo e mergulhar em uma tradição que vai muito além do simples ato de beber uma xícara quente. Por lá, o café se mistura com espiritualidade, cultura, política e até revoluções.
De volta à origem
Como o Egito, a origem da bebida é africana. Mais especificamente remonta ao século XI na Etópia, onde se conta que cabras, ao comerem os frutos vermelhos do cafeeiro, ficavam mais animadas e cheias de energia. A partir da observação desse fenômeno, os frutos foram cozidos em água quente, dando origem a uma bebida estimulante. A rota comercial da península Arábica, intenso na época, rapidamente espalhou essa novidade.
O país que mais se adaptou à nova bebida foi o Iêmen, e é de lá que surge a preparação que hoje conhecemos como café turco: grãos torrados, moídos e fervidos em água, não mais cozinhando-se a fruta. É exatamente essa forma de preparo que chegou ao Egito e se enraizou na cultura do país até hoje.

A chegada do café ao Egito
Quando o Império Otomano conquistou o Egito, no início do século XVI, levou junto sua maneira de fazer café. O costume, como tantos outros turcos, foi logo incorporado à vida cotidiana egípcia.
Além disso, os místicos sufis (vertente dentro do islamismo) do Iêmen também influenciaram profundamente a cultura cafeeira egípcia, usando o café como parte de rituais religiosos e momentos de conexão espiritual.
No final do século XVII, a cidade do Cairo já contava com mais de 600 “Bayt Gahwa” (casas de café), centros de vida social e intelectual.
Como se pede café no Egito?
No Egito, o café é feito tradicionalmente com água adoçada, então o que define o tipo de bebida é a quantidade de açúcar:
- Mazbootah: o café com a quantidade padrão de açúcar.
- Ziadah: com açúcar extra.
- Areehah: com menos açúcar que o padrão.
- Saddah: sem açúcar, geralmente servido em funerais.
Aliás, até as especiarias são evitadas nos funerais. Em outros contextos, porém, é comum encontrar o café egípicio com canela, cardamomo, noz moscada e cravo – e não só café, no Egito se usa muito do sabor das especiarias nos preparos em geral.

A tradição das tribos Beja
As tribos Beja, também conhecidas como Bisharin, Hedared, Hadendoa, Amarar, Beni-Amer, Hallegnda e Hamran, vivem nas montanhas do Mar Vermelho entre o sudeste do Egito e o nordeste do Sudão. Com raízes que remontam aos tempos faraônicos, os Beja mantêm seu idioma bedaui e uma cultura profundamente conectada ao café.
A preparação do café entre os Beja é um ritual refinado. O anfitrião, vestido com trajes tradicionais, monta uma pequena fogueira e torra os grãos, normalmente em uma lata de estanho adaptada. Depois, os esmaga manualmente em um pilão com especiarias como pimenta.
Os potes utilizados são de argila vermelha ou de lata leve. Depois de ferver, o conteúdo é vertido em xícaras redondas e muito pequenas ao mesmo tempo em que o anfitrião faz movimentos específicos de mão e braço para melhorar o aroma, a espuma e o som (O som da bebida sendo mexida é parte essencial do prazer dos locais). O café é servido em pequenas xícaras com o tradicional “Bismillah”, benção que quer dizer “em nome de Allah”, antes de tomá-lo.
Casas de café: centro da vida egípcia
As casas de café seguem sendo parte fundamental da vida social e política egípcia. Nas cidades do Egito, especialmente no Cairo, os cafés são locais de convivência entre homens — jogando gamão, fumando shisha e, claro, tomando café.
Embora tenham enfrentado resistência de líderes religiosos nos séculos passados, todas as tentativas de proibição falharam. No século XVII, o sultão Murad IV chegou a aplicar pena de morte por consumo de café, mas a bebida resistiu.
Palco da política e da cultura
No século XIX e início do XX, investimentos feitos pelos governantes na cidade do Cairo, fizeram com que muitos imigrantes europeus fossem atraídos e se mudassem para lá. Com isso, centenas de casas de café de estilo europeu surgiram nos novos bairros, juntando-se aos cafés egípcios-otomanos que já existiam. Enquanto os primeiros serviam doces, sorvetes e até álcool, os segundos continuavam com poesia, música e marionetes.
Os novos cafés atendiam tanto os imigrantes europeus quanto os egípcios atraídos pela cultura europeia que, naquela época, veio a ser identificada com a alta sociedade, ao mesmo tempo que as tradicionais casas de café egípcio-otomano eram percebidas como passagens antiquadas das classes mais baixas.
No início do século XX, esses espaços que refletiam a divisão de classes e estilos também viraram palco de debates políticos. Muitos jornalistas escreviam suas matérias ali, e autoridades, por vezes através de agentes secretos dos serviços de inteligência, monitoravam os cafés como forma de medir a opinião pública. Durante a revolução de 1919, na qual os egípcios exigiram o fim da ocupação britânica e a concessão da independência, estudantes usavam cafés para distribuir boletins e discursar.
Machismo também na cultura do café
No Egito, quase todos os homens tem o seu “ahwa”, sua casa de café tradicional, que sempre frequentam. O mesmo não acontece com as mulheres. Muitas não são autorizadas a sair de casa e, as que saem, só o fazem acompanhadas de seus pais, namorados ou maridos.
É um abismo gigante a se transpor para que mulheres tenham autonomia e segurança para beber um café tranquilamente nas ruas do Cairo. A relação das mulheres com os ahwa egípcios é marcada por uma história de exclusão.
A partir da década de 2010, vê-se um movimento crescente de reivindicação e transformação desses espaços. Embora ainda enfrentem desafios, principalmente em bairros tradicionais ou cidades do interior, muitas egípcias têm ocupado e ressignificado os cafés tradicionais, transformando-os em espaços de convivência mais inclusivos.
Enquanto isso, não se surpreenda se você, no Egito, ver um café onde existem espaços segregados para “famílias”, “mulheres solteiras” e “homens solteiros”.
Café Riche: história viva
Fundado em 1908 no centro do Cairo, o Café Riche é símbolo da efervescência política e cultural do Egito.
Foi palco de reuniões revolucionárias, apresentações da famosa Oum Kalthoum e encontros com o Nobel Naguib Mahfouz.

Seus quatro donos iniciais eram estrangeiros. O quinto, Abdel Malak Mikhail Salib, tornou-se o primeiro nativo egípcio a possuir o café em 1962. Essa mudança de propriedade também marcou uma mudança no país, já que os egípcios estavam começando a recuperar a identidade econômica nacional dos proeminentes estrangeiros.
Mesmo enfrentando mudanças de gestão, fechamento por ações judiciais, reconstrução por terremoto, o café continua sendo um ponto de referência. Este é um local que certamente vale visitar quando você for ao Egito.
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(Blogpost escrito em parceria com a jornalista Carol Lemos.)
Respostas de 2
Muito bom. Bem escrito e muito rico em informações. Parabéns pelo trabalho.
Muito obrigada pelo comentário Gabriel, fico feliz que esteja gostando 😉 Continue acompanhando! Um abraço, Renata