Por trás do estereótipo do chá existe um Reino Unido que bebe 98 milhões de xícaras de café por dia e abriga redes que crescem mais rápido que muitos pubs. Mas não é novidade: três séculos antes da “terceira onda”, Londres já se alimentava de debates, negócios e até conspirações nas antigas coffee‑houses. Sirva‑se e descubra como a ilha trocou as folhas de Camellia pela cafeína — e moldou parte da economia moderna no processo.
Como o café desembarcou na Inglaterra?
A bebida chegou na Inglaterra pelas rotas mediterrâneas dos muçulmanos. A rainha Elizabeth I abriu relações diplomáticas com o Império Otomano estabelecendo diversas trocas comerciais e acordos de navegação marítima. Este comércio permitiu que produtos como o chá da Ásia, o café e o chocolate entrassem na Inglaterra.
| Ano | Acontecimento | Fonte |
|---|---|---|
| 1637 | O estudante grego Nathaniel Conopios prepara a primeira xícara em Oxford. O café ficou popular entre os estudantes e professores que, inclusive, estabeleceram um clube de café! | GoCoffeeGo |
| 1650 | O judeu Jacob abre The Angel, primeiro coffee house inglês, também em Oxford. | London Walks |
| 1652 | O grego Pasqua Rosée inaugura a primeira casa de Londres, em St Michael’s Alley. | layersoflondon.org |
| 1654 | A “Queen´s Lane Coffee House” foi aberta e é a casa de café ainda em funcionamento mais antiga da Europa. | Queens Lane |
| 1670s | Mais de 600 coffee‑houses funcionam só em Londres; algumas cobram 1 penny por entrada. | Wikipedia |
| 1675 | Carlos II tenta fechar todas as casas — medida revogada após protestos públicos. | Wikipedia |
A propaganda mais antiga de café
A primeira casa de Londres oferecia torra e café turco. Historiadores contam que o grego vendia mais de 600 xícaras de café por dia! A imagem abaixo mostra a primeira propaganda de café, feita por ele. Ela menciona, é claro, as diversas propriedades medicinais do café e seu maravilhoso sabor.
“Penny Universities”
Por um único penny, qualquer homem (mulheres eram barradas) ganhava o direito de beber café, folhear jornais e trocar ideias. Machismo de lado, essa democratização do conhecimento fez dos salões as “universidades de um centavo”, ou seja, as casas de café em Oxford ofereciam uma forma alternativa de aprendizagem, para além da estrutura proporcionada pela academia. Tanto é que esses espaços serviram de embrião de jornais como o The Spectator e, também neles, que repórteres, conhecidos como runners (“corredores”), apareciam para anunciar as notícias mais fresquinhas.
Imagine pessoas recitando poemas, mostrando seus artigos escritos e debatendo sobre as notícias do jornal. Eram espaços de grande interação, produção e troca intelectual.
A proibição real
A introdução do café como bebida para os ingleses trouxe muitas mudanças em sua rotina.
Imagine que antes do café, o vinho e a cerveja eram as principais bebidas apreciadas pelos britânicos no café da manhã. A violência, o alcoolismo e a falta de atenção no trabalho, digamos, era bastante comum!
Com o novo hábito de beber café, os ingleses passaram a beber menos álcool, a produzir mais, a interagir mais e, claro, a conversar sobre assuntos políticos.
Justamente por isso, em 1675, o rei Charles II escreveu uma proclamação decidindo que todas as casas de café fossem fechadas. Entretanto, os donos das casas de café argumentaram e a proclamação foi extinta. Mas teve seu efeito: iniciou-se o declínio das casas de café na Inglaterra.
Petição das mulheres contra o café
E não foi apenas a majestade que as casas de café incomodaram. No século XVII, as mulheres eram divididas entre “respeitáveis” ou não. As que queriam ser “respeitáveis” não podiam acessar à vida pública e deveriam se manter fora das casas de café. O livro “A história do caminhar”, de Rebbeca Solnit, aprofunda este assunto, e a participação das mulheres historicamente nas casas de café ainda carece de muita pesquisa e gera muito debate entre os historiadores. Existe um artigo que aprofunda este assunto.
Com isto, em 1674, as mulheres apresentaram uma petição pedindo o fechamento das casas de café e seu consumo, que elas chamaram de “uma bebida que seca e enfraquece”, reclamando da virilidade masculina após o uso.
O texto chega a ser muito engraçado e há quem defenda que o texto, na verdade, não foi escrito por mulheres e sim, por homens, em uma produção literária, justamente, em uma casa de café. Verdade ou não, como resposta, os homens também retornaram com uma petição, claro, defendendo o café, que pode ser lida na íntegra, em inglês.
Apesar disso, algumas casas tinham funcionárias mulheres, e algumas mulheres foram, inclusive, proprietárias de casas de café, como Anne Rochford e Moll King.
Café no dia a dia britânico
Hoje cada britânico consome cerca de 2,9 kg/ano de café, número que sobe a cada relatório industrial. O mercado de coffee shops faturou £5,3 bilhões em 2024 e deve ultrapassar 10.500 lojas de marca até janeiro / 2025, segundo a World Coffee Portal.
Nos lares, reina a cafetière (French press). Já nas cafeterias urbanas, o pedido campeão é o flat white — influência australiana que ganhou o coração dos millennials de Shoreditch a Manchester. Instantâneo segue forte no escritório, mas grãos de origem única representam o segmento que mais cresce.
A ponte com o Brasil
Entre 1880 e 1930, o Brasil chegou a fornecer 80% do café mundial, com sacas que saíam de Santos e atracavam em Liverpool. A abundância barateou o grão e ajudou a popularizar a cafetière nos lares britânicos do pós‑guerra.
Método favorito: cafetière britânica
I have measured out my life with coffee spoons.
T.S. Eliot, 1915 (The Poetry Foundation) Tweet
Passo a passo clássico (300 ml):
- Moagem grossa, 18 g de café.
- Água a ~96°C; cubra metade do pó, mexa 10s, complete.
- Infusão de 4 min; quebre a crosta superficial e remova a espuma.
- Prense devagar e sirva na hora — quanto mais tempo em contato, maior o amargor.
Resultado esperado: corpo médio, notas de caramelo (grãos brasileiros) e final limpo que dispensa açúcar.
Muito mais que uma bebida
Das discussões que forjaram revoluções políticas às startups de fintech que hoje ocupam antigos armazéns, o café sempre espelhou o dinamismo britânico. Cada gole remete a marítimos garantindo navios, poetas contando a vida em colheres e uma nação que, mesmo fiel ao chá, jamais abandonou a xícara preta.
Conta pra gente: qual coffee shop londrina está na sua lista? Deixe um comentário e continue na série Café pelo Mundo!
(Blogpost escrito em parceria com a jornalista Carol Lemos.)
Uma resposta
Parabéns pelo artigo detalhado; será que o conceito histórico das ‘Penny Universities’ ainda inspira os cafés modernos britânicos?